sábado, 10 de janeiro de 2009

«A invenção do Dia Claro»
José De Almada Negreiros
Lisboa, 1921


A VERDADE

Eu tinha chegado tarde á escola. o mestre quiz, por força, saber porquê. e eu tive que dizer: Mestre! quando sahi de casa tomei um carro para vir mais depressa mas, por infelicidade, deante do carro cahiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.

O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!

E eu tive de dizer: Mestre! quando sahi de casa...minha mãe tinha um irmão no extrangeiro e, por infelicidade, morreu hontem de repente e nós ficamos de luto carregado.

O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!

E eu tive de dizer: Mestre! quando sahi de casa...estava a pensar no irmão de minha mãe que está no extrangeiro ha tantos annos, sem escrever. Ora isto ainda é peor do que se elle tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de lucto carregado ou não.

Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lh'o disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria effectivamente que lhe dissesse a verdade. E, creança como eu era, puz todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração á solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar á Escola ha uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de côr-de-rosa. Mestre! a boneca estava vestida de côr-de-rosa! A boneca tinha a pelle de céra. Como as meninas! A boneca tinha os olhos de vidro. Como as meninas! A boneca tinha as tranças cahidas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...

E acrescento eu...tão bom que é ser menina.

1 comentário: