Neste dia especialmente dedicado a nós, mulheres, faço aqui homenagem a uma, cujo trabalho profissional tem demonstrado a vontade que tem de revelar as problemáticas sociais relacionadas com a mulher em Portugal. Nascida a 1935, em Lisboa, Paula Figueiroa Rego desde cedo percebeu que o seu mundo apenas poderia ser vivido através da pintura. «É tudo copiado à vista», insiste a artista, que expõe com as pinturas os seus desenhos preparatórios realizados com a constante presença dos modelos, desvendando assim os «segredos» de atelier, a «ordem e a disciplina» do trabalho do quadro em que se sustenta o seu poder de subversão. «Aprender a desenhar é muito importante. Eu também não sei muito bem, mas estou a aprender», diz Paula Rego.
A pintura de Paula Rego não pode ser classificada como conservadora ou académica, mesmo se ela vem sendo (em especial desde o seu trabalho na National Gallery) um exercício de reaprendizagem dos meios de expressão pictural, reapropriando-se da possibilidade da representação humana e aprofundando os recursos da volumetria ilusionística do quadro, em contacto com as lições dos mestres antigos e de alguns contemporâneos (como Lucian Freud, que especialmente admira). «O naturalismo está muito fora de moda, mas eu não me importo», declara Paula Rego. «A moda passará. Estas revolucionárias 'pinturas silenciosas, com as suas réplicas sombrias', sobreviverão», comenta Maggie Gee num artigo do «Daily Telegraph».
Num ano em que finalmente se conseguiu dar um passo de gigante no que diz respeito ao aborto em Portugal, deixo-vos com uma marca da autora duma série em que é sempre uma mulher só que interpela o espectador. É uma denúncia ao aborto clandestino e foi iniciada pela pintora como uma reacção directa às condições em que decorreu o anterior referendo sobre o aborto, especialmente face à elevada abstenção que se poderia interpretar como desinteresse perante o problema. «Fiz estes trabalhos para Portugal, revoltada com o que se passou no referendo sobre o aborto», diz a pintora, que têm ainda nas suas memórias vividas do país as situações dramáticas que testemunhava na Ericeira quando as mulheres dos pescadores, rodeadas de filhos, lhe pediam o dinheiro necessário para os desmanchos. Paula Rego desenha adolescentes e jovens mulheres que sofrem, que escondem a cara ou enfrentam o espectador, culpando-o com o olhar, algumas delas prostradas sobre a cama, outras agachadas sobre um bacio ou um balde, outras ainda contorcendo-se com dores, entregues apenas a si própias e a uma imensa solidão. São retratos de sofrimento e angústia, de ansiedade, desolação, medo, humilhação e vergonha, feitos de uma violência contida, sem sangue nem gritos, com uma construção figurativa formalmente austera, sempre rigorosa e simples, que os traços precisos dos rostos, os espaços fechados e a estrita economia dos cenários tornam ainda mais realistas e pungentes.
2 comentários:
Os quadros da Paula Rego são muito marcantes! Gosto particularmente da forma como transforma histórias e contos em quadros que, na maioria das vezes, transcendem o nosso imaginário. O quadro alusivo à "Metamorfose" de Kafka, por exemplo, é de uma expressividade incrível. Fiquei feliz por apenas o ter visto depois de ler o livro, há uns anos, antes de adormecer, ou os pesadelos que tive (moscas esvoaçantes semi-humanas por todo o lado) teriam de certeza sido piores. Adorei o Post!
Não percebo este dia mas mas achei excelente o texto, roxo! Gostei imenso de o ler.
Enviar um comentário